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Hagar e Ishmael

H. Odhner

"Então lhe disse o anjo do Senhor: Torna-te para tua senhora e humilha-te debaixo de suas mãos" (Gênesis 16:9)

Por causa de sua alma humana, o homem tem a faculdade da auto-análise e do autocontrole. Pode refletir, pensar e raciocinar. Pode escolher livremente entre o bem e o mal, reprimir seus impulsos e - através de esforço consciente - desenvolver seu entendimento e, daí, sua vontade. E por causa dessas faculdades espirituais, pode ser conjungido ao Senhor e receber as bênçãos da vida eterna.

Em contraste com a mente animal, a mente do homem é chamada "racional". Isto não quer dizer, porém, que todo homem seja realmente racional; não quer dizer que o homem é racional desde o seu nascimento ou que ele automaticamente se torne racional (este seria o caso se ele não fosse infestado desde o nascimento pelos males hereditários (AC 1902)); mas quer dizer que todo ser humano tem, por nascimento, uma faculdade pela qual uma mente racional pode ser formada nele.

A história sagrada de Abrão, Hagar, Ishmael, Sarai e Isaac fala desta gradual e miraculosa formação de uma mente racional no homem caído. No sentido espiritual da Palavra, o patriarca Abrão representa o homem interior onde a faculdade chamada racionalidade reside desde o nascimento. Existe um influxo Divino atuando na alma de cada pessoa que diz que há um Deus e que Ele é um (VRC 8). Mas não há conhecimento a respeito de Deus a não ser através de instrução na revelação Divina. E como o Egito era considerado a fonte do conhecimento no mundo antigo, Abrão foi conduzido ao Egito e lá esteve durante certo tempo, onde enriqueceu-se com rebanhos e gado.

Pois assim é com a mente do ser humano. A primeira parte a ser conscientemente abastecida é a memória; esta é formada com as experiências dos sentidos e se torna o repositório de todo o nosso conhecimento e a fundação de toda a nossa mente. Sem conhecimentos, o homem não pode ser reformado nem se tornar racional. Isto porque a faculdade da racionalidade só se ativa na pessoa quando ela medita no que já tem aprendido.

A terra do Egito simboliza, portanto, a memória, e daí não é de se admirar que o primeiro filho de Abrão nascesse de uma mãe egípcia: Hagar, a serva de Sarai. A alma, aqui representada por Abrão, está num esforço contínuo de fazer o homem racional. Existe uma mente racional apenas potencialmente, então chamada racionalidade, e existe mesmo na infância, pois todos os poderes secretos do pensamento analítico já se acham inscritos como uma capacidade na mente infantil. O primeiro sinal dessa racionalidade é o aparecimento da afeição de saber - aquela curiosidade natural; em nossa história, essa afeição pelo conhecimento é representada por "Hagar". É este amor que leva a criança e o jovem ao desejo de saber tudo a respeito da terra e do céu, de saber o que os amigos mais velhos sabem e fazem, e por quê e como fazem. Essa afeição abre os campos do conhecimento sem os quais o homem de hoje não pode se tornar racional. Sem o conhecimento não se pode descobrir nenhum uso novo, nenhuma variedade de idéias, nenhum deleite. Sem esse amor natural a mente racional não pode ser gerada.

O que está descrito no texto das Escrituras que tomamos por lição é, assim, as dores do parto que acompanham a formação da mente racional. É nessa mente que são elaborados os mais elevados destinos do homem. A razão deve governar a mente, deve expandir seu domínio até que o homem inteiro seja de uma qualidade realmente humana. Conforme a promessa Divina, Abrão iria ter um filho cuja semente possuiria a terra de Canaan. Pela semente ou pelos descendentes de Abrão são entendidos os vários graus de potencialidades que se podem abrir dentro da mente racional, para fazer dessa mente um reino de Deus.

Mas isto envolve um extenso processo gradual. O homem deve passar por muitas experiências e vicissitudes para que sua mente possa se encher com o conhecimento da vida e ele possa julgar com serenidade e destemor o que é bom para ele e para os outros, ponderando a verdade contra os enganos. Quanto tempo não passa antes que a incredulidade seja substituída por verdadeiras convicções, e os raciocínios impetuosos se abrandem em paciente sabedoria! Ninguém, senão o Salvador encarnado palmilhou esse caminho sem hesitação e sem se corromper com todas as suas ilusões e tentações. Ninguém, senão Ele, compreendeu a infinita importância de cada momento. Ninguém, senão Ele, chegou ou chegará ao alvo perfeito e completo. Os homens vacilam com muita freqüência no curso de suas vidas. Precipitam-se em direções erradas. Mas sempre podem, se quiserem, dar ouvidos a uma advertência angélica e voltarem atrás.

O capítulo que lemos em Gênesis não dá, apenas pelo sentido da letra, nenhuma indicação de que aqui se trata do racional. Fala simplesmente de certos incidentes característicos da vida dos orientais na antigüidade. Lemos que Sarai, sendo estéril, deu sua escrava egípcia por concubina de Abrão, esperando assim perpetuar a família; lemos que Hagar, elevada de repente a uma posição tão importante, e pensando que o filho que ela teria iria herdar a riqueza de Abrão, começou a ficar insolente para com sua senhora. E quando Sarai a castigou e humilhou, ela, envergonhada e revoltada, fugiu para o deserto de Shur, pelo qual passava o caminho que ia dar à seu país, o Egito. Mas ali, junto a uma fonte no deserto, um anjo do Senhor a encontra e lhe ordena que retorne à sua senhora e se submeta às suas mãos. fonte no deserto, um anjo do Senhor a encontra e lhe ordena que retorne à sua senhora e se submeta às suas mãos. O anjo prometeu que Hagar de fato iria dar à luz um filho cujo nome seria Ishmael e cuja semente se multiplicaria numa grande nação. Mas o anjo acrescentou que Ishmael seria como um "jumento selvagem": sua mão se levantaria contra todos, e a mão de todos contra ele.

Assim, ali estava Hagar, hesitando entre Egito e Canaan. Quando o homem começa a descobrir que pode raciocinar por si mesmo, descobre também que é difícil submeter-se a autoridade. Alguma coisa nele se levanta contra os laços que ainda teimam em prendê-lo. Ele começa a sonhar em ser o senhor de seus caminhos e domínios. Sua capacidade de raciocinar parece ser suficiente para resolver os mistérios mais profundos. Ele não se sabe que não tem ainda uma mente racional, que só existe como uma promessa, assim como Ismael estava ainda no útero de Hagar.

O homem pensa que apenas o conhecimento, a prudência humana e a destreza de raciocínio fazem o racional. E enquanto pensar assim, estará desprezando a sabedoria espiritual que só se mostra como uma afeição pela verdade espiritual; essa afeição superior é aqui representada por Sarai. Além de não possuir essa sabedoria, acresce que o homem é demasiadamente orgulhoso para admitir que essa sabedoria possa existir nos outros. É o orgulho que impede a submissão.

No começo do desenvolvimento da mente racional, o homem vê que não recebe honra suficiente por causa de seu conhecimento das coisas espirituais. Ele percebe que o conhecimento espiritual se destina à aquisição de riqueza celeste e de uma vida interior, e não necessariamente à aquisição de valores do mundo e de si. Existe daí a tentação de, por meio das verdades aprendidas, ele se voltar para a glória do mundo, para o plano da vida natural onde o pensamento da memória é mais estimado e onde os julgamentos se baseiam apenas nas aparências. Esse reino é o Egito espiritual, para onde Hagar estava pronta para ir, correndo o risco de perder a criança que estava para nascer.

No entanto, há uma percepção que é dada a todos os homens de que a autoridade é uma coisa necessária e que a submissão é o caminho inevitável para a vida racional. O que o Senhor disse, "Estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida", aplica-se universalmente à lei civil e moral como também à vida espiritual. Para satisfazer seu amor pelo saber, uma criança precisa se submeter à disciplina da educação e à sabedoria mais elevada dos pais, dos mais velhos e dos superiores. O racional só pode emergir por meio do autocontrole. Quando as nossas falhas e carências nos abalam a confiança em nossa própria força, surge a percepção de que precisamos dirigir nossa vista para alguma coisa fora de nós mesmos, para algum princípio espiritual que possa controlar nossas cobiças e ambições - se quisermos ser verdadeiramente inteligentes e sábios. Parece que estão a nos dizer como o anjo disse a Hagar: "Torna-te para tua senhora e humilha-te debaixo de suas mãos"

Quando ouve essa voz, a pessoa chega a uma encruzilhada em sua vida. De um lado ela tem o caminho de chão bem batido que vai através do deserto até o Egito - o grande mundo de atividades naturais e, às vezes, de ateísmo, onde a riqueza e a glória esperam por todos aqueles que obtêm os favores do Faraó. É um caminho longo e extenuante; passa por regiões onde não há água; mas no país fértil bem à frente está o vale do Nilo, o centro da cultura, da ciência, da arte e da civilização; há os príncipes tiranos cujos atos arbitrários podem fazer dos homens escravos ou amigos.

De outro lado, na Canaan escarpada, que destino a espera ali? Primeiro, indubitavelmente, a humilhação de ter de retornar, a confissão de se ter agido mal. Mas, depois disso, há uma satisfação crescente em se servir a uma boa causa e a certeza de que serão cumpridas as promessas de uma recompensa eterna.

Para o membro da Igreja, a escolha é entre o príncipe deste mundo e Aquele que venceu o mundo. É uma escolha entre a vida para este mundo, com seus favores e prazeres passageiros, e uma vida para o céu, com as bênçãos de uma consciência incorruptível.

Esta escolha é dada à pessoa no início dos dois caminhos, quando os encantos do mundo começam a atraí-la; é dada ao jovem quando ele luta para se desvencilhar da autoridade dos princípios espirituais que ele ainda considera como tradições que interferem com suas ambições e com a licença de seus impulsos. Mas não é só aos jovens que esta escolha é oferecida. Aos adultos são mostrados os contrastes entre os dois países, Egito e Canaan, sempre que as tentações e ansiedades obscurecem a verdade ou quando a aplicação de princípios conhecidos e aceitos enfrentam situações novas e enganadoras. Para todos nós, o que está em jogo nessa escoles novas e enganadoras. Para todos nós, o que está em jogo nessa escolha é o desenvolvimento de um verdadeiro racional, o meio de salvação.

Hagar, a criada de Sarai, haveria de ter um filho cuja descendência não se poderia contar por causa de sua multidão. E com essa esperança animando seu coração, ela voltou sobre seus passos para o campo de Mamre.

O racional só pode nascer na pessoa através da auto-humilhação. É no constrangimento de si próprio - quando a pessoa se compele a fazer o que é acertado - que está o segredo da reforma do homem e a esperança de restauração de nossa raça caída. É dever constante e perpétuo do homem constranger-se a retornar às leis espirituais que devem governar sua vida. Se o homem fizer isso, o Senhor fará tudo o mais. Mas o senhor não pode constranger o homem a ser racional; se a sua liberdade espiritual fosse violada, o homem se reduziria ao nível das bestas.

Para se tornar racional, a pessoa deve dar ouvidos à voz dos anjos e retornar à humildade das criancinhas e à docilidade dos meninos. Seu amor pelo conhecimento deve se voltar para as coisas espirituais.

Nos estados de auto-compulsão o homem alcança a máxima liberdade, pois que ele não é um escravo da carne e do mundo; ele está na liberdade do homem interior por meio da qual o Senhor pode conceder-lhe um próprio novo e celeste, um novo espírito que pode ser gradativamente aperfeiçoado. Este novo ser - e esta nova liberdade - tem início no racional; de fato, no empenho íntimo de seu pensamento enquanto está compelindo a si próprio (AC 1937).

Mas a mente racional, no início, carrega consigo o orgulho de Hagar. Mostra-se intolerante e áspera, dogmática e inclinada a julgar os outros. Nascido no amor de conhecer, esse racional se estriba na verdade antes de se conjungir ao bem numa vida de uso. Por isso, Ismael é descrito como um "jumento selvagem", ou um homem cuja mão se ergueria contra todo mundo.

Enquanto a mente racional do homem está no estado da verdade só - mesmo que a verdade seja da fé - ele é impertinente, contencioso e combativo; não tem misericórdia e está sempre pronto para julgar que todos os outros estão em falsidade. Também é impaciente para se adaptar aos outros, ou para cooperar com os outros (AC 1949, 1964). A verdade racional é incomplacente. Quem pode escapar de seu julgamento impiedoso? (AC 1951). Todavia, sua função primordial é julgar a falsidade e, como tal, é necessária, não só como um estado preparatório, mas como uma defesa e um posto avançado da igreja.

Mas essas características da mente racional que está só na verdade não satisfaz por muito tempo a mente que está sendo regenerada. Porque a verdade racional nos foi dada não para descobrirmos males e falsidades nos outros, mas os males e erros que continuamente surgem em nossa própria vida mental. Foi-nos dada para a crítica de nosso próprio pensamento e para nos ajudar no auto-exame e na auto-compulsão.

Sendo assim, logo se conclui que um racional nascido do amor de conhecer e com essas características não pode herdar a terra santa de Canaan.

Hagar realmente voltou e deu à luz um filho, o primogênito esperado de seu pai, que o chamou Ishmael - "o Senhor ouviu". E Abrão amava Ishmael. Porque esse primeiro racional é, em muitos aspectos, nobre, corajoso e amável. Como um jumento selvagem no deserto, é tímido e veloz; mas quando é posto no trabalho, torna-se teimoso e indomável. No entanto, isto é tolerado, contanto que esse racional não se vire contra a verdade espiritual.

Esse racional é aperfeiçoado somente quando a pessoa aprende a pensar pela caridade, pelo bem. Porque então a afeição pelo bem e verdade espirituais é "implantada pelo Senhor de um modo admirável nas verdades do primeiro racional" (AC 2657).

Parece ser apenas uma progressão ou um aperfeiçoamento do racional chamado "jumento selvagem", que está mais na verdade do que no bem. Todavia, é uma mudança tão radical, tão profunda, que a história nas Escrituras representa agora o racional não por alguma mudança em Ishmael, mas pelo nascimento de um outro filho a Abrão - um filho chamado Isaac; e mais tarde Isaac desapropria Ishmael da herança de Abrão.

Isaac nasceu de Sarah. Ele é descrito como um homem manso, pacífico e dócil, além de paciente, confiante e sábio; e, diferentemente de outros patriarcas - marido de uma única esposa. Isaac, por isso, representa o racional quanto ao bem mais do que quanto à verdade. As vitórias que conquistou foram todas sem sangue, de paz, misericórdia e amor. representa, pois, a mente racional nascida não da vontade da carne, mas do Espírito, pela regeneração.

A palavra "regeneração" não é uma mera figura de linguagem, mas realmente descreve um novo nascimento, o nascer de uma nova vontade dentro do homem. quando um tal espírito novo é nascido, toda a casa de sua mente é reorganizada. Assim, Isaac agora se torna o herdeiro da promessa de que todas as nações seriam benditas na semente de Abrahão.

Ishmael demorou a reconhecer a mudança que o nascimento de Isaac tinha causado. A razão natural em nós resiste à idéia de que ela não pode enfrentar sozinha os problemas da vida. E assim vemos Ishmael zombando de seu irmão franzino, tal como o raciocínio natural zomba de quaisquer verdades religiosas que ameacem perturbar seus preconceitos.

Não há outra defesa contra o orgulho da própria inteligência a não ser esta de Sarah, que, disputando em favor de sua linhagem, exclamou: "Deita fora esta serva e o seu filho!"

Mas a história de Ishmael não terminou ali. Ele foi salvo da morte por uma fonte milagrosa que fez brotar água no deserto, em resposta à oração de Hagar, e cresceu até se tornar um arqueiro poderoso e o pai de uma grande povo. E assim também o amor da mente natural pode achar o seu lugar na mente do homem e na igreja do Senhor.

A combatividade do primeiro racional passa pelo meio das tentações da vida, e a mente amadurece no calor do amor espiritual, para reconhecer que as imperfeições da natureza humana não podem ser removidas pela força de argumentos, mas pelos processos mais vagarosos do auto-conhecimento, da auto-compulsão e do crescimento espiritual, processos esses que deverão continuar pela eternidade nos que verdadeiramente são os herdeiros de Abrahão. Amém.

 

Lições: Gênesis 16:1-15; 21:1-3, 8-21; AC 2657.
Traduzido por C.R.Nobre


Arcanos Celestes 2657 (partes)  -  "...Há dois racionais com cada homem que está sendo regenerado, um antes da regeneração e o outro após a regeneração. O primeiro, que é de antes da regeneração, é formado pela experiência dos sentidos, pela reflexão nas coisas da vida civil e moral e por meio dos conhecimentos e raciocínios derivados deles e por meio deles, como também pelo conhecimento das coisas espirituais da doutrina da fé ou provenientes da Palavra. Mas, nesse tempo, essas coisas não vão além das idéias da memória corporal...
"Mas o racional de após a regeneração é formado pelo Senhor através das afeições pela verdade e o bem espirituauis, quais afeições são implantadas pelo Senhor de uma maneira admirável nas verdades do primeiro racional; e as coisas que ali estão em concordância e que favorecem são vivificadas, mas as restantes são separadas como inúteis; finalmente, os bens e verdades espirituais são reunidos... e as coisas incongruentes que não podem ser vivificadas são rejeitadas para a circunferência, e isto por passos sucessivos, à medida que crescem os bens e verdades espirituais, junto a vida de suas afeições...
"...Quando o homem está regenerado, o que acontece na idade adulta, então, pelo segundo racional (com que ele é agraciado pelo Senhor) ele começa a pensar que o bem e a verdade não procedem dele mesmo, mas, não obstante, ele faz o bem e pensa a verdade como de si mesmo... O próprio do seu primeiro racional é então sucessivamente separado, e o homem é agraciado pelo Senhor com um próprio que se torna como de seu novo racional. O segundo racional... começa a sentir algum deleite no bem e na verdades mesmos, e a ser afetado por eles, não por causa de alguma coisa sua própria, mas por causa do bom e verdadeiro; e quando ele é levado por este deleite ele abandona o mérito até que finalmente o rejeita como um [mal] enorme..."

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