Divina Providência
]Emanuel Swedenborg
I - A Divina Providência é o governo do Divino Amor e da Divina Sabedoria do Senhor
1. Para que se entenda o que é a Divina Providência e que ela é o governo do Divino Amor e da Divina Sabedoria do Senhor, importa saber o que anteriormente foi dito e mostrado a este respeito no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria[1], que é o seguinte: no Senhor, o Divino Amor pertence à Divina Sabedoria e a Divina Sabedoria ao Divino Amor (n° 34-39); o Divino Amor e a Divina Sabedoria não podem deixar de estar e existir nos outros criados por eles (n° 47-51); todas as coisas do universo foram criadas pelo Divino Amor e pela Divina Sabedoria (n° 52, 53 e 151-156); todas as coisas do universo são receptáculos do Divino Amor e da Divina Sabedoria (n° 55-60); o Senhor aparece como Sol perante os anjos; o calor daí procedente é o amor e a luz daí procedente é a sabedoria (n° 83-88, 89-92, 93-98 e 296-301); o Divino Amor e a Divina Sabedoria, que procedem do Senhor, fazem um (n° 99-102); o Senhor de eternidade, que é Jehovah, criou de Si, e não do nada, o universo e todas as suas coisas (n° 282-284 e 290-295). Estes são os pontos vistos no tratado que se chama Sabedoria Angélica sobre o Divino Amor e a Divina Sabedoria.
2. Por estas proposições, juntamente com as que foram descritas naquele tratado a respeito da criação, pode-se realmente ver que o governo do Divino Amor e da Divina Sabedoria do Senhor é o que se chama Divina Providência. Como, porém, ali se tratou da criação e não da conservação do estado das coisas após a criação, e como isto pertence ao governo do Senhor, por isso agora se deve tratar desse assunto aqui, sendo que nesta seção se tratará da conservação da união do Divino Amor e a Divina Sabedoria, ou do Divino Bem e o Divino Vero, nas coisas que foram criadas, a cujo respeito se dirá nesta ordem:
(ii.) O Divino Amor e a Divina Sabedoria procedem do Senhor como um só.
(iii.) Essa unidade está numa espécie de imagem em tudo o que foi criado.
3. (i.) O universo, com todas e cada uma de suas coisas, foi criado pelo Divino Amor por meio da Divina Sabedoria. Que o Senhor de eternidade, que é Jehovah, seja, quanto a essência, o Divino Amor e a Divina Sabedoria, e que Ele, de Si mesmo, tenha criado o universo e todas as coisas daí, foi demonstrado no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria. Segue-se daí a conclusão de que o universo com todas e cada uma de suas coisas foi criado pelo Divino Amor por meio da Divina Sabedoria. No referido tratado também se demonstrou que o amor sem a sabedoria nada pode fazer, nem a sabedoria o pode sem o amor. Com efeito, o amor sem a sabedoria ou a vontade sem o entendimento nada pode pensar, nada pode ver e sentir, nem nada pode falar; por conseguinte, nada pode fazer o amor sem a sabedoria ou a vontade sem o entendimento, do mesmo modo que a sabedoria sem o amor ou o entendimento sem a vontade nada pode pensar nem nada pode ser e sentir, nem mesmo falar. Por isso, a sabedoria sem o amor ou o entendimento sem a vontade nada pode fazer, porque, se o amor lhe for suprimido, não há mais vontade alguma nem, por consequência, ação alguma. Visto que isso existe no homem quando realiza alguma coisa, ainda mais existirá em Deus, que é o Amor mesmo e a Sabedoria mesma, quando criou e fez o universo e todas as coisas ali.
[2] Que o universo, com todas e cada uma de suas coisas, tenha sido criado pelo Divino Amor por meio da Divina Sabedoria, pode-se confirmar também por todos os objetos vistos no mundo. Toma somente algum objeto em particular e o examina por alguma sabedoria, e te confirmarás. Toma uma árvore, ou sua semente, ou seu fruto, ou sua flor, ou suas folhas e, ajuntando a sabedoria que há em ti, observa esse objeto com um bom microscópio e verás maravilhas; a as coisas interiores, que não vês, são ainda mais maravilhosas. Observa a ordem em sua sucessão, de que modo a árvore cresce da semente até uma nova semente, e examina se em toda sucessão não há um esforço contínuo para se propagar para mais adiante. Com efeito, o último para o qual tende é a semente, na qual seu prolífico se acha novamente. Se, então, queres pensar espiritualmente – e isto tu podes, se o quiseres – não verás nisso a sabedoria? E, ainda mais, se quiseres pensar nisso espiritualmente, isso não vem da semente, nem do sol do mundo, que é puro fogo, mas está na semente pelo Deus Criador, cuja sabedoria é infinita, e isso não somente quando a semente foi criada, mas também depois, continuamente, porquanto a sustentação é a perpétua criação, assim como a subsistência é a perpétua existência. Dá-se de modo semelhante se suprimires a vontade do ato: a obra cessa; ou se da fala suprimires o pensamento: a fala cessa; ou se do movimento suprimires o esforço: o movimento cessa. Numa palavra, se do efeito suprimires a causa: o efeito perece; e assim por diante.
[3] Decerto, em tudo o que é criado foi inserida uma força, mas a força não efetua coisa alguma por si mesma, mas por aquilo que insere a força. Observa ainda alguma outra coisa sobre a terra, como um bicho-da-seda, uma abelha ou outro animálculo, e examina-o primeiro naturalmente, depois racionalmente e, enfim, espiritualmente; e então, se podes pensar com elevação, ficarás admirado diante de todas essas coisas. E, se admitires que em ti fale a sabedoria, com admiração dirás: “Quem não vê nisso o Divino? Todas essas coisas pertencem à Divina Sabedoria”. Ainda mais se observares os usos de todas as coisas que foram criadas, de que maneira se sucedem em sua ordem até o homem, e do homem até a criação de que procedeu; e que o encadeamento de todas as coisas depende da conjunção do Criador com o homem, e, se quiseres reconhecer, disso depende a conservação de tudo. Que o Divino Amor tenha criado todas as coisas e nada tenha criado sem a Divina Sabedoria, é o que se verá na sequência.
4. (ii.) O Divino Amor e a Divina Sabedoria procedem do Senhor como um só. Isto também é evidente pelas coisas que foram demonstradas no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria, principalmente por estas que ali se acham: o Ser e o Existir no Senhor são distintamente um (n° 14-17); no Senhor, os infinitos são distintamente um (n° 17-22); o Divino Amor pertence à Divina Sabedoria e a Divina Sabedoria ao Divino Amor (n° 34-39); o amor nada pode fazer sem o casamento com a sabedoria (n° 401-403); o amor nada efetua senão em conjunção com a sabedoria (n° 409 e 410); o calor espiritual e a luz espiritual, ao procederem do Senhor como Sol, fazem um, assim como o Divino Amor e a Divina Sabedoria são um (n° 99-102). Pelo que foi demonstrado nessas passagens vê-se a verdade deste assunto. Mas, visto que se ignora de que maneira duas coisas que sejam distintas entre si podem agir como uma unidade, quero mostrar aqui que [primeiro:] a unidade sem a forma não existe, mas a forma mesma faz a unidade; e, em seguida, [segundo:] que a forma faz mais perfeitamente a unidade à medida que as coisas que entram na forma são distintamente diferentes e, no entanto, unidas.
[2] [Primeiro:] Que não exista a unidade sem a forma, mas que a forma mesma faça a unidade. Todo aquele que pensa com concentração da mente pode ver claramente que a unidade não existe sem a forma, e, se existe, tem uma forma. Com efeito, tudo o que existe tira da forma o que se chama qualidade e também o que se chama predicado, como também o que se chama mudança de estado e o que se chama relativo e outras coisas semelhantes. Por isso, o que não está numa forma não é de afeição alguma, e o que não é de afeição alguma também é uma coisa nula; a forma mesma dá tudo isso. E como todas as coisas que estão numa forma – se a forma é perfeita – relatam-se mutuamente, assim como um elo a outro elo numa corrente, segue-se daí que a forma mesma faz a unidade e, assim, o sujeito a que se pode atribuir a qualidade, o estado, a afeição e, assim, alguma coisa, segunda a forma da perfeição.
[3] Tal unidade é tudo o que se vê no mundo com os olhos, mas tal unidade é também tudo o que não se vê com os olhos, seja na natureza interior, seja no mundo espiritual. Essa unidade é o homem, essa unidade é a sociedade humana e essa unidade é a igreja, como também é todo o céu angélico diante do Senhor. Numa palavra, essa unidade é o universo criado não somente no geral, mas também em todo particular. Para que todas e cada uma das coisas sejam formas, é necessário que Aquele que criou todas as coisas seja a Forma mesma, e que da Forma mesma existam todas as coisas que foram criadas em formas. É isto, pois, que foi demonstrado no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria: o Divino Amor e a Divina Sabedoria são substância e são forma (n° 40-43); o Divino Amor e a Divina Sabedoria são a forma em si mesma e, por conseguinte, a forma mesma e única (n° 44-46); o Divino Amor e a Divina Sabedoria são um no Senhor (n° 14-17 e 18-22); e procedem como um do Senhor (n° 99-102 e outras passagens).
[4] [Segundo:] Que a forma faça mais perfeitamente a unidade à medida que as coisas que entram na forma sejam diferentes e, no entanto, unidas. Isso dificilmente entra no entendimento a não ser que este se eleve, porquanto a aparência é que a forma não pode fazer a unidade a não ser por meio de semelhanças de igualdades daqueles que constituem a forma. Falei com os anjos algumas vezes sobre este assunto e eles disseram que isto é um arcano que os mais sábios dentre eles percebem claramente, mas os menos sábios percebem obscuramente. Mas, que seja verdade que essa forma é mais perfeita à medida que as coisas que a fazem sejam distintamente diferentes e, todavia, unidas de um modo singular, eles o confirmaram pelas sociedades nos céus, que, tomadas em conjunto, constituem a forma do céu, e pelos anjos de cada uma das sociedades nisto, que, quanto mais cada um é distinto, portanto livre e, assim, como se por si mesmo e por sua afeição ama os consociados, mais perfeita é a forma da sociedade. Também ilustraram isso pelo casamento do bem e do vero, em que quanto mais os dois são distintos, mais perfeita podem fazer uma unidade. É o mesmo em relação ao amor e à sabedoria. O que é indistinto é confuso, do que resulta toda imperfeição da forma.
[5] De que maneira, porém, as coisas perfeitamente distintas se unem e fazem uma unidade assim, também o confirmaram por muitas coisas, principalmente pelas que se acham no homem, em quem coisas inumeráveis são distintas assim e, todavia, unidas; são distintas por coberturas, mas unidas por ligamentos. Dá-se de modo semelhante em relação ao amor e todas as suas coisas, como também em relação à sabedoria e todas as suas coisas, os quais não são percebidos de outro modo senão como uma unidade. Sobre isso, vide muitas coisas no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria (n° 14-22) e na obra O Céu e o Inferno (n° 56 e 489). Isto foi relatado porque pertence à sabedoria angélica.
5. (iii.) Essa unidade está numa espécie de imagem em tudo o que foi criado. Que o Divino Amor e a Divina Sabedoria, que são um só no Senhor e d’Ele procedem como um, estejam numa espécie de imagem em tudo o que foi criado, pode-se ver pelo que foi demonstrado em várias passagens no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria, principalmente pelo que ali se encontra nos ns. 47-51, 55-60, 282-284, 290-295, 313-318, 319-326 e 349-357. Nessas passagens se mostrou que o Divino está em tudo o que foi criado, porque Deus Criador, que é o Senhor de eternidade, de Si mesmo produziu o Sol do mundo espiritual e, por esse Sol, todas as coisas do universo; consequentemente, que esse Sol, porque vem do Senhor e é onde o Senhor está, é não apenas a primeira substância, mas também a única de que todas as coisas procedem; e visto que é a única substância, segue-se que está em tudo o que foi criado, mas com infinita variedade segundo os usos.
[2] Ora, visto que no Senhor estão o Divino Amor e a Divina Sabedoria e no Sol proveniente d’Ele estão o Divino fogo e o Divino esplendor, e do Sol provêm o calor espiritual e a luz espiritual, e esses dois fazem um, segue-se que essa unidade está numa espécie de imagem em tudo o que foi criado. Daí vem que todas as coisas que estão no universo se referem ao bem e ao vero, e, de fato, à conjunção destes, ou, o que é a mesma coisa, todas as coisas no universo se referem ao amor, à sabedoria e à conjunção destes, pois o bem é do amor e o vero é da sabedoria, porque o amor chama bem a tudo o que é seu, e a sabedoria a tudo o que é seu chama vero. Que a conjunção destes esteja em tudo o que foi criado, ver-se-á na sequência.
6. Muitos reconhecem que existe uma substância única, que também é a primeira, da qual procedem todas as coisas, mas não se sabe qual é essa substância. Crê-se, assim, que ela é simples de tal maneira que nada existe de mais simples, podendo ser comparada ao ponto, cuja dimensão é nula, e que é de um número infinito desses pontos que existem as formas das dimensões. Mas isto é uma falácia, oriunda da ideia do espaço, pois dessa ideia parece haver tal mínimo. A verdade, porém, é que quanto mais simples e mais pura uma coisa é, mais ela é plena e completa. Esta é a razão pela qual quanto mais se olha interiormente algum objeto, mais se observam ali coisas mais admiráveis, mais perfeitas e mais formosas. Assim, na substância primeira há as coisas mais admiráveis, mais perfeitas e mais formosas de todas. Que isto seja assim é porque a substância primeira procede do Sol espiritual que, como foi dito, é proveniente do Senhor e no qual o Senhor está. Por conseguinte, esse Sol espiritual é a única substância, a qual, por não se achar no espaço, é tudo em todas as coisas, tanto nas maiores quanto nas menores do universo criado.
[2] Como esse Sol é a substância primeira e única da qual existem todas as coisas, segue-se que nela existem infinitamente mais coisas do que podem aparecer nas substâncias dali oriundas, que são chamadas substanciadas e, por fim, matérias. Que estas não possam aparecer naquelas é porque descendem desse Sol por meio de graus de dois gêneros, segundo os quais todas as perfeições decrescem. Assim é que, como acima se disse, quanto mais interiormente se observa alguma coisa, mais admiráveis, perfeitas e formosas são as coisas que se notam. Essas coisas foram ditas para que se confirme que o Divino está numa espécie de imagem em tudo o que foi criado, mas que aí aparece cada vez menos na descida por meio de graus, e ainda menos quando o grau inferior separado do grau superior é bloqueado pela oclusão das matérias terrestres. Essas coisas, porém, serão tidas como obscuras se não for lido e compreendido o que foi demonstrado no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria sobre o Sol espiritual (n° 83-172), sobre os graus (n° 173-281) e sobre a criação do universo (n° 282-357).
7. (iv.) É da Divina Providência que tudo o que foi criado, no geral e no particular, seja tal unidade, e, se não for, que assim se torne, isto é, que em tudo o que foi criado exista algo proveniente do Divino Amor e da Divina Sabedoria ao mesmo tempo, ou, o que é o mesmo, que em tudo o que foi criado estejam o bem e o vero ou a conjunção do bem e do vero. Visto que o bem pertence ao amor e o vero pertence à sabedoria, como se disse acima (n° 5), por isso, em várias passagens no que se segue, em lugar de amor e sabedoria se dirá bem e vero, e em lugar de união do amor e a sabedoria se dirá conjunção do bem e do vero.
8. Pelo artigo precedente se vê que o Divino Amor e a Divina Sabedoria, que são um no Senhor e do Senhor procedem como um, estão numa espécie de imagem em tudo o que foi criado por Ele. Agora se dirá também algo em particular sobre essa unidade ou essa união, que se chama casamento do bem e do vero. Esse casamento: (1) Está no Senhor mesmo, pois como foi dito, o Divino Amor e a Divina Sabedoria n’Ele são um só. (2) Provém do Senhor, pois em tudo o que procede d’Ele estão o amor e a sabedoria completamente unidos; esses dois procedem do Senhor como Sol, o Divino Amor como o calor e a Divina Sabedoria como luz. (3) Esses são até recebidos como dois pelos anjos, mas são unidos neles pelo Senhor. Dá-se o mesmo com os homens da igreja. (4) Pelo influxo do amor e da sabedoria provenientes como um do Senhor, nos anjos do céu e nos homens da igreja, e pela recepção deles por anjos e homens é que o Senhor é referido na Palavra como Noivo e Marido, e o céu e a igreja como Noiva e Esposa. (5) Assim, quanto mais o céu e a igreja, no geral, e o anjo do céu e o homem da igreja, no particular, estiverem nessa união ou no casamento do bem e do vero, mais serão imagem e semelhança do Senhor, visto que esses dois são um no Senhor e, de fato, são o Senhor. (6) O amor e a sabedoria no céu e na igreja, no geral, e no anjo do céu e no homem da igreja, no particular, são um quando a vontade e o entendimento, assim, quando o bem e o vero, fazem um; ou, o que é o mesmo, quando a caridade e a fé fazem um; ou, o que é ainda o mesmo, quando a doutrina proveniente da Palavra e a vida segundo essa doutrina fazem um. (7) De que maneira, porém, esses dois fazem um no homem e em tudo o que é seu, mostrou-se no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria, na Quinta Parte, onde se tratou da criação do homem e, principalmente, da correspondência da vontade e do entendimento com o coração e o pulmão (n° 358-432).
9. Mas, de que maneira fazem esse um nas coisas que estão abaixo ou fora do homem, tanto nas que estão no reino animal quanto as que estão no reino vegetal, isso se dirá em várias passagens na sequência, das quais essas três devem ser adiantadas: Primeiro: Que no universo e em todas e cada uma de suas coisas, que foram criadas pelo Senhor, existe um casamento do bem e do vero. Segundo: Que esse casamento, após a criação, foi separado no homem. Terceiro: Que é da Divina Providência que aquilo que foi separado se torne um e que o casamento do bem e do vero seja restaurado. Essas três proposições foram confirmadas por muitos pontos no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria, portanto não há necessidade de confirmá-las mais. Também, cada um pode ver pela razão que, porquanto existiu pela criação um casamento do bem e do vero em tudo o que foi criado e, depois, ele foi separado, por isso o Senhor opera continuamente para que seja restaurado. Consequentemente, que a sua restauração e, assim, a conjunção do universo criado com o Senhor através do homem é da Divina Providência.
10. (v.) O bem do amor não é bem além da medida em que estiver unido ao vero da sabedoria, e o vero da sabedoria não é vero além da medida em que estiver unido ao bem do amor. Isso o vero e o bem têm por sua origem; o bem, em sua origem, está no Senhor, do mesmo modo que o vero, porque o Senhor é o Bem mesmo e o Vero mesmo, e esses dois são um n’Ele. Assim é que o bem nos anjos do céu e nos homens na terra não é o bem em si, senão à medida que foi unido ao vero, e o vero não é o vero em si, senão à medida que foi unido ao bem. Sabe-se que todo bem e todo vero são provenientes do Senhor. Assim, como o bem faz um com o vero e o vero faz um com o bem, segue-se que, para que o bem seja bem em si e o vero seja vero em si, devem fazer um no recipiente, que é o anjo do céu e o homem da terra.
11. Decerto se sabe que todas as coisas no universo se referem ao bem e ao vero, porque pelo bem se entende o que universalmente abrange e envolve todas as coisas do amor, e pelo vero se entende o que universalmente abrange e envolve todas as coisas da sabedoria. Mas ainda não se sabe que o bem não é coisa alguma senão quando unido ao vero, nem que o vero não é coisa alguma senão quando unido ao bem. É certo que parece que o bem é alguma coisa sem o vero, e que o vero é alguma coisa sem o bem, porém não o são. Com efeito, o amor (cujas coisas são todas chamadas bens) é o Ser da coisa, e a sabedoria (cujas coisas são todas chamadas veros) é o Existir da coisa por aquele Ser, como se mostrou no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria (n° 14-16). Por isso, assim como o Ser sem o Existir não é coisa alguma, nem o Existir sem o Ser, assim também o bem sem o vero e o vero sem o bem não são coisa alguma. Por semelhante modo, o que é o bem sem uma relação a algo? Acaso pode ser chamado bem? Pois é de afeição nula e de nula percepção.
[2] Aquilo que, unido ao bem, afeta e se faz perceber e sentir se refere ao vero, porque a este se refere o que está no entendimento. Dize a alguém “bem” somente, e não “isso ou aquilo é um bem”; acaso esse bem é alguma coisa? Mas por isso ou aquilo que se percebe como unido ao bem, torna-se alguma coisa. O vero não se conjunta ao bem em parte alguma senão no entendimento, e todo o entendimento se refere ao vero. É semelhante em relação ao querer: querer sem saber, perceber e pensar aquilo que o homem quer não é coisa alguma, mas unido a isso torna-se alguma coisa. Todo querer é do amor e se refere ao bem, e todo saber, perceber e pensar é do entendimento e se refere ao vero. Daí é evidente que querer não é coisa alguma, mas querer isso ou aquilo é alguma coisa.
[3] Ocorre o mesmo em relação a todo uso, visto que o uso é o bem. Se o uso não for determinado para alguma coisa com a qual seja um, não é uso, portanto, não é coisa alguma. O uso tira o que é seu do entendimento, e aquilo que daí é conjunto ou adjunto ao uso se refere ao vero; é daí que o uso tira sua qualidade.
[4] Por essas poucas coisas pode-se ver que o bem sem o vero não é coisa alguma; por conseguinte, tampouco o vero é alguma coisa sem o bem. Foi dito que o bem com o vero e o vero com o bem são alguma coisa; daí se segue que o mal com o falso e o falso com o mal não são coisa alguma, porque estes são opostos àqueles e o oposto destrói; no caso aqui, destrói o que é alguma coisa. Sobre isso, porém, dir-se-á na sequência.
12. Existe, todavia, o casamento do bem e do vero na causa e existe o casamento do bem e do vero pela causa no efeito. O casamento do bem e do vero na causa é o casamento da vontade e o entendimento, ou do amor e a sabedoria. Esse casamento está em tudo o que o homem quer e pensa e, daí, conclui e tem em intenção. Esse casamento entra no efeito e o produz, mas ao efetuar esses dois se mostram distintos, porque o simultâneo faz então o sucessivo. É como quando quer e pensa em se nutrir, vestir, habitar, fazer um negócio ou obra, conversar: então, ele primeiro quer e nisso pensa ao mesmo tempo, ou conclui e tem em intenção. Ao determinar essas coisas no efeito, então uma sucede a outra, mas sempre fazem continuamente um, na vontade e no entendimento. Os usos nesses efeitos são do amor ou do bem; os meios visando o uso são do entendimento ou do vero. Essas afirmações gerais qualquer um pode confirmar por exemplos específicos, bastando que perceba distintamente o que se refere ao bem do amor e o que se refere ao vero da sabedoria, e perceba distintamente de que maneira se refere na causa e de que maneira no efeito.
13. Foi dito algumas vezes que o amor faz a vida do homem, mas não se deve entender o amor separado da sabedoria, ou o bem separado do vero na causa, porque o amor separado ou o bem separado não é coisa alguma. Por isso, o amor que faz a vida íntima do homem, a qual é proveniente do Senhor, é amor e sabedoria ao mesmo tempo. Também o amor que faz a vida do homem, tanto quanto for recipiente, não é o amor separado na causa, mas é o amor no efeito, pois o amor não pode ser entendido sem sua qualidade, e a sua qualidade é a sabedoria. Tampouco pode a qualidade ou a sabedoria existir senão por seu ser, que é o amor; assim é que são um. É o mesmo em relação ao bem e ao vero. Ora, como o vero é procedente do bem, assim como a sabedoria é procedente do amor, por isso um e outro tomados ao mesmo tempo se chamam amor ou bem, porque o amor em sua forma é a sabedoria e o bem em sua forma é o vero. Da forma, e não de outra parte, existe toda qualidade. Por aí se pode ver agora que o bem não é mais bem a não ser na proporção que estiver unido ao vero, e que o vero não é mais vero a não ser na proporção que estiver unido ao seu bem.
14. (vi.) O bem do amor não unido ao vero da sabedoria não é o bem em si, mas um bem aparente; e o vero da sabedoria não unido ao bem do amor não é o vero em si, mas um vero aparente. A verdade é que não existe bem algum que seja bem em si se não for unido ao seu vero, nem vero algum que seja o vero em si se não for unido ao seu bem. Entretanto, existe o bem separado do vero e o vero separado do bem. Este existe nos hipócritas e bajuladores, nos maus, quaisquer que sejam, e naqueles que estão no bem natural e em nenhum bem espiritual. Esses e aqueles podem fazer o bem à igreja, à pátria, à sociedade, aos concidadãos, aos indigentes, aos pobres, às viúvas e aos órfãos, e também podem entender os veros, pensar neles pelo entendimento e, por esse pensamento, pronunciá-los e fazê-los. Contudo, esses bens e veros não são interiormente – por conseguinte, não em si mesmos – bens e veros neles, mas bens e veros exteriores, portanto somente uma aparência. De fato, são somente por causa de si e do mundo e não por causa do bem mesmo e do vero mesmo; consequentemente, não procedem do bem e do vero. Por isso, são somente da boca e do corpo, e não do coração.
[2] Podem ser comparados ao ouro e à prata cobertos de escória, ou à madeira podre, ou ao excremento. E os veros pronunciados podem ser comparados ao sopro da respiração que se dissipa, ou ao fogo fátuo que desvanece e que de fora parece verdadeiro. Mas aparecem assim neles, enquanto podem parecer de outro modo para os ouvintes e recipientes, que o ignoram, pois o externo afeta a cada um segundo o seu interno. Com efeito, o vero no ouvido de outrem, o que quer que seja que a boca enuncie, é recebido na mente segundo o estado e a qualidade desta. Dá-se de modo quase semelhante naqueles que estão no bem natural pela hereditariedade e em nenhum bem espiritual, pois o interno de todo bem e de todo vero é espiritual e este dissipa os falsos e os males, enquanto o natural, só, os favorece; e favorecer os males e falsos não concorda com fazer o bem.
15. O bem pode ser separado do vero e o vero ser separado do bem, e quando se separam aparecem como bem e vero. Isto é porque existe para o homem a faculdade de agir, que se chama liberdade, e a faculdade de entender, que se chama racionalidade. Pelo abuso dessas faculdades é que o homem pode parecer nos externos diferente do que é nos internos. Por conseguinte, o mau pode fazer o bem e falar o vero, ou o diabo pode imitar um anjo de luz. Mas, sobre esse assunto, vide no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria esta sequência: a origem do mal é o abuso das faculdades que são próprias do homem e que se chamam racionalidade e liberdade (n° 264-270); essas duas faculdades existem tanto nos maus quanto nos bons (n° 425); o amor sem o casamento com a sabedoria, ou o bem sem o casamento com o vero, não pode fazer coisa alguma (n° 401); o amor nada faz senão em conjunção com a sabedoria ou o entendimento, e faz com que a sabedoria ou o entendimento seja reciprocamente conjunto (n° 410-412); a sabedoria ou o entendimento, pelo poder que lhe é dado pelo amor, pode ser elevado e perceber as coisas que são da luz do céu e recebê-las (n° 413); o amor pode ser semelhantemente elevado e receber as coisas que são do calor do céu se amar sua cônjuge, a sabedoria, nesse grau (n° 414, 415); de outro modo, o amor impede a sabedoria ou o entendimento de sua elevação, para que aja consigo (n° 416-418); o amor é purificado no entendimento se for elevado ao mesmo tempo (n° 419-421); o amor purificado pela sabedoria no entendimento se torna espiritual e celeste, mas o amor conspurcado no entendimento se torna sensual e corpóreo (n° 422-424); com a caridade, a fé e a conjunção destas dá-se o mesmo que se dá com o amor, a sabedoria e a conjunção destes (n° 427-430); o que é a caridade nos céus (n° 431);
16. (vii.) O Senhor não consente que algo seja dividido; por isso, deve-se estar ou no bem e ao mesmo tempo no vero, ou no mal e ao mesmo tempo no falso. A Divina Providência do Senhor tem por fim que o homem esteja no bem e ao mesmo tempo no vero e opera principalmente para isso, pois assim o homem é o seu bem e seu amor, e também o seu vero e sua sabedoria, porquanto assim o homem é homem, pois então é imagem do Senhor. Como, porém, o homem, enquanto vive no mundo, pode estar no bem e ao mesmo tempo no falso, bem como no mal e ao mesmo tempo no vero, e mesmo estar no mal e ao mesmo tempo no bem, assim, como se fosse duplo, e como essa divisão destrói essa imagem e, assim, o homem, por isso a Divina Providência do Senhor visa em todas e cada uma de suas coisas que essa divisão não exista. E como é melhor para o homem estar no mal e ao mesmo tempo no falso do que estar no bem e ao mesmo tempo no mal, por isso o Senhor o permite, não que o queira, mas porque não pode resistir por causa do fim, que é a salvação. Que o homem possa estar no mal e ao mesmo tempo no vero, e o Senhor não possa resistir a isso por causa do fim que é a salvação, é porque o entendimento do homem pode ser elevado à luz da sabedoria e ver os veros, ou reconhecê-los quando ouve, enquanto seu amor permanece abaixo. De fato, o homem pode pelo entendimento estar no céu, mas pelo amor estar no inferno. Isso não pode ser negado ao homem, porquanto dele não podem ser tiradas as duas faculdades pelas quais ele é homem e é distinto das bestas e pelas quais unicamente ele pode ser regenerado e salvo, faculdades essas que são a racionalidade e a liberdade. Porque por elas o homem pode agir segundo a sabedoria e também agir segundo um amor que não pertence à sabedoria. E pode pela sabedoria acima ver o amor abaixo, por conseguinte, os pensamentos, as intenções, as afeições, assim, os males e falsos, como também os bens e veros da vida e de sua doutrina, sem o conhecimento e o reconhecimento dos quais em si mesmos não pode ser reformado. Acima se tratou dessas duas faculdades e na sequência se dirá mais delas. Esta é a razão pela qual o homem pode estar no bem e ao mesmo tempo no vero, no mal e ao mesmo tempo no falso, como também nas alternações destes.
17. No mundo, o homem dificilmente pode entrar em uma ou outra conjunção ou união, isto é, do bem e o vero ou do mal e o falso, pois enquanto aí vive é mantido no estado de reforma ou de regeneração. Mas todo homem entra em uma ou outra após a morte, porque então não pode mais ser reformado e regenerado; mantém-se então tal qual fora no mundo, isto é, tal qual era seu amor reinante. Por isso, se esteve na vida do amor do mal, é-lhe suprimido todo vero que adquiriu no mundo para si por meio de um mestre, pela prédica ou pela Palavra. Ao ser suprimido o vero, o homem se imbui do falso concordante com o seu mal, assim como uma esponja absorve a água. E, vice-versa, se, porém, esteve na vida do amor do bem, é-lhe removido todo falso que recebera no mundo pela audição e pela leitura e no qual não se confirmara; em seu lugar lhe é dado o vero que concorda com seu bem. Isto é o que se entende por estas palavras do Senhor:
“Tomai... dele o talento, e entregai-o ao que tem dez talentos. Porque a todo o que tem será dado para que tenha abundantemente, mas o que não tem, até o que tem lhe será tirado” (Mt. 25:28,19; 13:12; Mc. 4:25; Lc. 8:18; 19:24-26).
18. Que cada um após a morte deva estar no bem e ao mesmo tempo no vero, ou no mal e ao mesmo tempo no falso é porque o bem e o mal não podem ser conjuntos, tampouco o bem e ao mesmo tempo o falso do mal, nem o mal e ao mesmo tempo o vero do bem. São, com efeito, opostos, e os opostos combatem entre si até que um destrua o outro. Aqueles que estão no mal e ao mesmo tempo no bem são entendidos por estas palavras do Senhor à Igreja de Laodicéia, no Apocalipse:
“Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; antes fosses frio ou quente; mas, como és morno, e nem és frio nem quente, vomitar-te-ei da Minha boca” (Ap. 3:15, 16).
E também por estas palavras do Senhor:
“Ninguém pode servir a dois senhores, pois odiará um e amará o outro, ou a um se ligará e ao outro desprezará” (Mt. 6:24).
19. (viii.) Aquilo que está no bem e ao mesmo tempo no vero é alguma coisa, e aquilo que está no mal e ao mesmo tempo no falso não é coisa alguma. Que aquilo que está no bem e ao mesmo tempo no vero seja alguma coisa, vê-se acima (n° 11). Segue-se daí que o mal e ao mesmo tempo o falso não é coisa alguma. Por não ser coisa alguma se entende não ter poder algum e nenhuma vida espiritual. Aqueles que estão no mal e ao mesmo tempo no falso, quais são todos no inferno, têm de fato poder entre si mesmos, pois o mau pode fazer maldades e as faz de mil maneiras; entretanto, pelo mal ele só pode fazer maldades aos maus, mas não pode fazer quase nenhuma maldade aos bons; e, se lhes faz, o que algumas vezes acontece, é por conjunção com o mal deles. Daí existem as tentações, que são infestações por maus espíritos no homem e, assim, combates pelos quais os bons podem ser libertos de seus males. Visto que os maus não têm poder algum, por isso todo o inferno diante do Senhor é não só como se fosse nada, como também é absolutamente nulo quanto ao poder. Que isto seja assim, é o que vi confirmado por muitas experiências. Mas é de se admirar que todos os maus se creem poderosos e todos os bons se creem sem poder. A razão é que os maus atribuem todas as coisas ao seu próprio poder, por conseguinte, as astúcias e malícias, e nada atribuem ao Senhor, enquanto os bons nada atribuem ao seu próprio poder, mas atribuem todas as coisas ao Senhor, que é Onipotente. Que o mal e o falso ao mesmo tempo não sejam coisa alguma é também porque eles não têm vida espiritual alguma. A razão é que a vida dos infernais não é considerada vida, mas morte. Por isso, quando tudo que é alguma coisa pertence à vida, ser alguma coisa não pode pertencer à morte.
20. Aqueles que estão no mal e ao mesmo tempo nos veros podem ser comparados a águias que voam alto e caem ao lhes serem tiradas as asas. Com efeito, fazem de modo semelhante, depois da morte, quando se tornam espíritos, os homens que compreenderam os veros, falaram deles e os ensinaram e, todavia, não consideraram Deus em suas vidas. Esses, por suas coisas intelectuais se elevam ao alto e, às vezes entram nos céus e se fingem anjos de luz. Quando, porém, lhes são suprimidos os veros e eles são expulsos, caem no inferno. As águias até significam os homens de rapina, que têm a vista intelectual, e as asas significam os veros espirituais. Foi dito que assim são aqueles que não consideraram Deus em suas vidas. Por considerar Deus na vida não se entende outra coisa senão pensar que isso ou aquilo é um pecado contra Deus e, por isso, não fazê-lo.